23.1.07

Diversidade Cultural, a nova fronteira.

Foi de 151 a 2 o placar final da derrota norte-americana, acontecida durante a 33a Conferencia Geral da Unesco, em 18 de outubro deste ano, quando da votação para aprovação,ou não, da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.

Apesar de todos os esforços americanos, que demandaram, inclusive, a tentativa de acordos comerciais bilaterais de última hora, utilizados como moeda de troca por votos em favor de seus interesses, saiu vitoriosa a proposta em prol da preservação da diversidade cultural. Mas ao final, o que de fato está por trás de toda a discussão sobre a diversidade cultural?

Em linhas gerais, trata-se de uma disputa internacional que coloca, de um lado, os Estados Unidos em posição de defesa do segundo item mais importante de sua balança comercial, a cultura (mais especificamente, o audiovisual) e, em posição antagónica, os países que, em virtude da hegemonia americana, perdem diariamente espaço que deveria ser ocupado por suas manifestações culturais, especialmente dentro de suas fronteiras.

Para esses últimos, mais do que um produto economicamente relevante, a cultura representa, acima de tudo, sua própria identidade, bem intangível de valor incomensurável. Os valores, objetivos e subjetivos, em discussão e em conflito, ao final, são claros e muito bem definidos, representando duas faces de uma mesma moeda chamada cultura, quais sejam:o bem cultural como produto comercial (posicionamento dos EUA) e a cultura como um bem necessário e indispensável a preservação da identidade dos povos (entendimento dos demais 151 países que votaram em favor da Convenção).

Como produto comercial, defendem os EUA e Israel que a cultura seja vista, tratada e transacionada em todo o globo como qualquer mercadoria e bem de consumo, tal qual televisores, soja, sapatos ou aço. Enquanto produto necessário à preservação da identidade cultural, compreendem os demais países que a cultura não deve se sujeitar às regras de comércio internacional, merecendo, pois, tratamento diferenciado.

Trata-se de uma discussão que se encontra fundamentada em valores eminentemente económicos, com uma pitada de valores de cunho ideológicos, ambos de grande relevância.

Saiu vencedora a segunda posição, em detrimento dos interesses norte-americanos. Acastelando uma terceira posição, evidentemente conciliatória e que considerava aspectos relevantes de ambos os lados, o Brasil acabou por apoiar a corrente em defesa da diversidade cultural e, por intermédio do ministro Gilberto Gil, envidou todos os esforços para aprovação da Convenção.

De imediato nada mudará no contexto do comércio internacional de bens culturais, uma vez que a implementação legal do plano de ação sugerido pela Convenção demanda tempo. A médio e longo prazo, surgirão elementos que tendem a mudar o cenário atual.

Política cultural

Segundo a Convenção, os estados-membros poderão, a seu critério, implementar mecanismos legais que permitirão a efetiva reestruturação da industria cultural nacional. Subsídios, incentivos, cotas de tela e taxação, por exemplo, não deverão ser mais vistas como medidas protecionistas. Os estados-membros não mais estarão sujeitos a ameaças estrangeiras (leia-se EUA) de retaliações comerciais, visto que a OMC não será mais o foro competente para apreciar e julgar questões e disputas relativas ao trafego de bens culturais ao redor do mundo. Saí de cena, portanto, a OMC e entra a Unesco.

Todavia, é certo que a Unesco articulará a criação de um órgão internacional com competência e jurisdição bem definidas para apreciação e manifestação acerca das disputas que a nova ordem cultural demandará. Alias, desconsiderar a necessidade de um foro arbitrai competente é negar a essencial característica humana de gerar conflitos, especialmente quando valores de ordem económica e/ou ideológica estão em discussão. Vale observar que em virtude da inconteste característica económica dos bens e produtos gerados pela industria cultural, não cabe uma visão simplista acerca das questões que nela se encerram. É importante manter em vista que estamos diante de um novo momento e de uma nova fronteira, e a norma,juntamente com a capacidade de se fazê-la aplicar, é o único caminho para harmonizar os mais diversos interesses, unos (a quase totalidade) em seu direcionamento,mas de infinita diversidade em seus desdobramentos. Sob essa óptica, que nos perdoem os puristas, mas cultura é, de fato, negócio, é transação comercial. É, queiram ou não, fator de significativa influencia na balança comercial de muitos países, na medida em que é clarasua capacidade de geração direta de receitas, inclusive através da sua convergência com outras atividades económicas. E que digam os franceses a respeito, árduos defensores da Convenção, cuja industria do turismo encontra-se fundamentalmente alicerçada na cultura, manifestada através da arquitetura, da história,das artes plásticas, da música,do cinema e do teatro, ou seja, da identidade cultural do povo francês.

Outros elementos para entendimento da importância das atividades culturais são vistos na pesquisa "Global Entertainmentand Media Outlook'.'Realizada por empresas de consultoria mundialmente reconhecidas, a pesquisa nos dá conta de que em 2009 o setor do entretenimento movimentará cerca de US$ 1,8 trilhão em todo o mundo, sendo, definitivamente, um dos setores de maior expansão no globo. As projeções apontam para um crescimento de 7,3% ao ano, para os próximos quatro anos, e indicam a América Latina como a segunda responsável por este crescimento (à razão de 8,2%, em média, ao ano), perdendo apenas para a China. Por outro lado, o estudo apresenta um dado interessante, os EUA terão o pior desempenho no setor, com crescimento de 5,6%.Vale notar que a distribuição de filmes, produção fonográfica e edição de livros são alguns dos negócios que integram a industria do entretenimento, para os fins da pesquisa citada. Diante disto, como negar o valor económico dos bens culturais? E mais, ficam claras as preocupações norte-americanas em relação a Convenção e as motivações para manter as transações de bens culturais, no âmbito internacional, como hoje se encontram.

Mas neste contexto, o mais importante é que o primeiro passo parapreservação do caleidoscópio cultural do planeta Terra foi dado. O resto são filigranas, entrelinhas que se ajustarão ao longo do tempo. O fato é que as manifestações culturais, até então, vinham se mantendo aquecidas em banho-maria, notadamente nos denominados países emergentes, especialmente por conta do controle norte-americano exercido na cadeia produtiva da "industria cultural". A partir da Convenção, espera-se que os novos elementos globais da economia dacultura elevem a temperatura do setor, fazendo com que o cadinho cultural mundial entre em ebulição, permitindo o resgate, a preservação e a difusão das mais diversas manifestações culturais emtodo o planeta. Resta, agora, aguardar os desdobramentos desse primeiromovimento, torcendo para que a Convenção se fixe em definitivo e que ocenário mundial ganhe novos contornos com a quebra da hegemonia norte-americana. Definitivamente, estamos diante de uma nova fronteira a ser desbravada, a preservação da diversidade cultural.


Artigo publicado na Revista TELAVIVA - janeiro 2005 por Petrus Barretto